
José Antônio, o Juca, observa com interesse e uma frustração não-revelada a angustiar-lhe o pensamento. Poderia estar ali, entre os alunos do Colégio Luz e Ordem, como tantos amigos. Aos 14 anos recém completados, tinha preferido o aprendizado em casa, na Estância dos Farias na localidade de Arroio Grande. Mas uma violência do professor contra o colega Epaminondas, filho do capataz, o fez reagir e tornar impossível a convivência. Por isso, abandonara os estudos havia quase cinco anos. Ele e o amigo aprenderam a ler, escrever e desenvolver as quatro operações da tabuada, e isso lhes parece bastante.
A passagem de Síria, olhos negros a mirá-lo com evidente interesse, é o antídoto para qualquer descontentamento. Precoce em seus 12 anos, a voluntariosa aluna das classes da professora Conceição d’Ávila não disfarça a predileção por Juca entre tantos admiradores seus. Paga certo preço por isso, vez que outro cobrado pelas colegas, que a consideram oferecida.
– Eu é que sei de mim – dá de ombros ela, a cada tentativa de intimidação que sofre das amigas. – E o que sei é que quero o Juca.
Com tanta evidência das intenções da moça, é impossível ao tímido Juca ocultar suas reações.
– É a guria mais bonita da vila – diz ele a Serafim, o Neco, irmão mais velho e experiente.
– É mesmo, mas é muito guria e tu muito guri. Cuidado que esse namoro pode dar confusão.
Alheia a esse despertar de sentimentos entre dois jovens de Cacimbinhas, a mesma população que agora se deleita em ver seus filhos e netos consagrando o sete de setembro – ou pelo menos parcela significativa dela – contraria-se em admitir que a novidade lhe é trazida pelo “Provisório”, como é chamado o intendente nomeado por Borges de Medeiros.
Ney de Lima Costa, o forasteiro, juiz e republicano feito substituto, tem, porém, metas de legitimar-se por eleições. Recém passado dos 31 anos, originário de uma cidade – “não de uma vila”, como costuma desdenhar – ocupa desde maio a Intendência, a cabeça como uma usina de projetos destinados a transformar a vida daquela gente.
– O problema desse rapaz é que ele não escuta ninguém – avalia o coronel Hippólyto Ribeiro Junior, tentando abrigar-se da chuva junto à fachada da própria Intendência. – Como não ouve, se convence de que só ele sabe pensar e fazer o que é bom para os outros.
Hippólyto, estancieiro estabelecido em Cacimbinhas, filho de um herói da Guerra do Paraguai, é um líder emergente de uma das facções em que se dividiu o Partido Republicano, dono do poder local frente a um Partido Federalista minoritário e ainda mais fragmentado. Morador da zona rural, mas com casa na vila para abrigar a prole matriculada no Colégio Luz e Ordem, assiste, da esquina privilegiada, aos pelotões de estudantes, uns carregando com orgulho justificado os estandartes brasileiro e rio-grandense.
Seu interlocutor compartilha a visão crítica sobre o forasteiro. O major João Maria Barbosa comandava até abril os destinos municipais, quando a cisão do Partido Republicano tornou impossível promover sua sucessão sem o risco de uma derrota. Juiz nomeado pelo presidente do Estado, Ney de Lima Costa enfrentou dois dias de viagem até a capital para denunciar ao governante a acefalia na vila. Borges de Medeiros viu no impetuoso correligionário a solução emergencial e o fez intendente temporário a partir de maio, até que as divergências locais se atenuassem.
Barbosa repete ao amigo o que nem um nem outro conseguiu assimilar, quatro meses adiante.
– Esse borrado instalou-se no poder político e passou a investir na titularidade, nos ignorando.
– Mas ele não perde por esperar – reage Hippólyto.
O som dos tambores se dilui com o afastamento da escola, mas ainda é forte o suficiente para que os poucos policiais militares do destacamento local o reiterem com suas botas embarradas. As palmas são prolongadas. A comunidade aprova a novidade, que enche a manhã deste aniversário antes ignorado.
Os dois amigos acompanham a reação popular. Há um risco de preocupação na testa do ex-intendente, que o outro interpreta e ao qual responde:
– Não se preocupe. A dele é uma candidatura inviável, porque a mesma gente que agora se esparrama em aplausos à gurizada não suporta ser tratada com desprezo.
A quase 200 metros dali, os pelotões se desfazem com alegria. Juca e Síria se procuram em meio à profusão de estudantes e curiosos. Quando seus olhares finalmente se cruzam, cabe a ele a iniciativa: atravessa a rua, alinha-se aos passos dela e, sem pedido nem negativa, a acompanha na direção de casa, o coração aos pulos pela receptividade e pela expectativa. Separam-se à porta da modesta residência da moça, de novo com o silêncio a tornar pleno de mistério o momento que estão vivendo.
– Estás precisando de mulher nesse corpo – diz Neco ao receber o irmão mais moço de volta, à porta do palacete dos Farias na vila. – Numa próxima vinda à vila vou te levar à Baixada.
Entram na residência apenas para recolher os gêneros que levarão à Estância, onde vivem com os pais, um irmão, duas irmãs e os agregados.
SOBRE O AUTOR
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
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