Em meio às preocupações do senador, os criados servem os doces que normalmente são a atração dos almoços do Morro da Graça. Desta vez, porém, nem um nem outro se dispõe às sobremesas, preferindo os licores na sala contígua.
– Vou aproveitar o silêncio da casa para uma sesta – comunica Pinheiro Machado à mulher que, à falta de convite, opta por quedar-se lá mesmo.
A mansão tem dois andares, ambos decorados com motivos sulistas. No térreo, Nhanhã destinou uma área de uso coletivo, por onde circulam os convidados do marido, com salões, banheiros e salas – a principal delas, a de refeições - e uma área privada, sob sua exclusiva responsabilidade e só utilizada pela criadagem feminina, em que se destaca a enorme cozinha, inspirada nas casas de sua infância, em Itapetininga, e do início da vida de casada, em São Luiz das Missões. O andar superior, para onde acaba de deslocar-se Pinheiro Machado, é de uso privativo do casal e dos parentes; estranhos só entram com um convite especial dele.
Em dias normais, o senador ocupa as manhãs a organizar a sua rotina, ler os diários, atender a um ou outro político e a algum jornalista. Às onze horas, desce para o andar térreo, informando Nhanhã se o almoço será privado, o que só raramente acontece, ou coletivo, como quase sempre. Sentam-se à mesa de refeições passado do meio dia, o dono da casa à cabeceira, a mulher à sua esquerda e o principal convidado, ao lado dela – distribuindo-se os demais conforme a importância a eles dada por Pinheiro Machado.
Nem nessas situações há sofisticação na comida. O casal gosta do trivial e estende essa predileção aos convidados, quase sempre satisfeitos com o que lhes é oferecido, e que em geral inclui arroz, feijão e carnes variadas, acompanhados por batatas, abóbora, aipim e saladas. Nhanhã e Pinheiro Machado casaram-se em 1879, quando ele ainda cursava a Faculdade de Direito de São Paulo.
Desde então ela incorpora o apelido carinhoso com que agora é conhecida. Encorpada com o passar dos anos, sua figura muito branca, loira e de olhos verdes domina o ambiente na ausência do marido. Na sua presença, assume papel coadjuvante, guardando eventuais manifestações para aquilo que lhe diz respeito – a casa, a comida, os doces – ou para quando é instada a falar.
Esse pacto nupcial não-escrito favorece o equilíbrio familiar. Não fosse pelas ausências íntimas de Pinheiro Machado, Nhanhã poderia dar-se por feliz. Mas o vigor com que se relacionavam até os vinte primeiros anos de casamento foi gradualmente arrefecendo, ao que ela acomodou-se computando primeiro à idade que avançava para os dois, e, mais recentemente, culpando-se pelos filhos que não puderam ter. Só por essa razão ela deixa de interpelar o marido sobre as intrigas que lhes chegam – por insinuações e até por cartas anônimas – denunciando relações extraconjugais do senador.
Cuidando da casa, dirigindo empregados e protegendo o marido, Nhanhã leva a vida canalizando os afetos para os sobrinhos e os afilhados. Às tardes, emitidas as ordens para o jantar, ela se dedica ao jardim. Tenta cultivar sob o calor do Rio de Janeiro espécies com que se familiarizou no Rio Grande do Sul, especialmente de flores. Dálias são as de sua preferência. Não se incomoda de por as mãos na terra, nem com os fracassos eventuais de suas experiências.
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
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