A Guerra de Cacimbinhas - 8 de setembro, Cacimbinhas, A padaria - DiCacimbinhas

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quinta-feira, 4 de junho de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - 8 de setembro, Cacimbinhas, A padaria


A mesma garoa que atrapalhou a festa da Independência durante a manhã anterior persegue o português Francisco de Paiva Coimbra quando, às quatro da madrugada, percorre os cem metros que separam a residência e seu estabelecimento comercial. Ele tateia na rua mal iluminada pelos candeeiros públicos, mas este é um caminho já conhecido, que seria capaz de vencer no escuro total, porque o repete desde que chegou à vila, quase trinta anos atrás, com a primeira mulher e três filhos, um deles nascido na viagem entre Jaguarão e Cacimbinhas. 

Abre as portas laterais da Padaria Central, acende os lampiões e vistoria a massa que descansa e cresce sobre as longas mesas, faz um rápido sinal ao empregado recém despertado e verifica o caixa, certificando-se de que há troco suficiente para o início das atividades. 

– Hoje é dia de pão sovado e bolachão – diz para si mesmo, enquanto empurra as primeiras toras de lenha para o forno já em brasa. – Fizeste bem em não apagar o fogo, assim é mais fácil retomá-lo – diz ele. 

O assistente ouve em silêncio o mesmo elogio de sempre, passa a lâmina sobre a massa, dividindo-a em pedaços variados, corrige a folga do avental de algodão branco, espalha farinha sobre as mãos e vale-se da comprida pá para empurrar os primeiros pães ao calor do fogo. 

– Logo estarão aqui os primeiros clientes – diz o padeiro, na espera por quem prepara cedinho o café da manhã para os filhos que às oito horas iniciam as aulas no Luz e Ordem. 

Filhos. Francisco se lembra dos seus, frutos de dois casamentos legais e de uma relação extraconjugal, dividido entre a alegria pelos que ainda estão sob seu abrigo e a saudade do rebelde aventureiro, sobre cujo destino há muito perdeu o controle. – Chora, entre tantos homens, é a predileta – pensa ele, sobre a filha Conceição, recém casada com Chico Britto. Lembra-se de Fernando e Antônio, jovens adultos e com a vida a antever-se plena de oportunidades, mas a quem perdeu para a tuberculose; de Alcides, eterna criança embora já próximo dos 30 anos; e de Tertuliano e de Ada, os dois a quem não pôde ainda legitimar. 

Onde andará o remanescente, filho tão esperado, a quem Francisco passou também o prenome? Não há como negar e, como faz a cada dia, o padeiro suspira prolongadamente pelas diferenças que acabaram por afastá-los. Resguardado pelo momento de solidão quase total, ele absorve a dor profunda da perda de alguém a quem quer e se permite o despudor da lágrima isolada. Engole em seco, suspira outra vez e tenta trabalhar. 

A imagem da última discussão, contudo, se impõe em sua memória, a martelar a dúvida recorrente sobre o certo e o errado. – Certo é o filho obedecer aos pais -, diz-se, a justificar o ato extremo da expulsão familiar, conseqüência de um convívio turbulento e próximo da mútua agressão. 

– Um pão de dedo e um pacote de manteiga de Pedras Altas. 

O dia já se insinua quando a voz infantil faz o pedido esperado. Francisco debruça-se sobre o balcão para identificar quem o interpela. Agradece a Deus pelo fim das abstrações, sorri para o pequeno Hélio e estende-lhe o que pede, sem receber nada em troca. Na caderneta encapada com papel de embrulho, anota a compra em nome de Serafim dos Santos Faria, o pai do guri – e de Neco e de Juca. 

Quando Delphina, a mulher, e Conceição, a filha, o recebem de volta, ao entardecer, já um semblante de confiança o caracteriza, pois o dia de trabalho havia sido produtivo e rentável. 

– As famílias ainda fazem pão em casa, mas já se aperceberam de que é mais prático comprá-lo na padaria – diz ele à mulher, beijando-a na testa antes de jogar-se sobre o pelego que forra uma surrada poltrona ao lado do fogão e de entregar-se à delícia da canjica com leite que o aguarda na mesa familiar.

SOBRE O AUTOR 
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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