Para quem se acostumou a providenciar refeições para 20, até 30 convidados, este é um almoço fora do comum. Nhanhã olha para os lugares vazios da mesa, corre a vista pelos lugares ocupados pelos sobrinhos e afilhados e, com um sinal da cabeça, emite a ordem que os serviçais esperam em silêncio. Falta ao ambiente a algazarra liderada pelo dono da casa, o senador José Gomes Pinheiro Machado, também hoje marcado por uma incomum introspecção.
Não há políticos da situação nem da oposição presentes àquela refeição.
Nhanhã dispensa o vinho, para frustração dos sobrinhos, mandando o criado servir água durante o almoço. Nem a zorrapa, o vinho ordinário destinado por José Gomes aos menos votados, está disponível neste começo de tarde que sucede o feriado nacional de sete de setembro. Mas não há espaços para reclamações, nem para diálogos mais efusivos.
Os doces, esses sim fazem a alegria dos comensais.
A meia dúzia de familiares que acaba de usufruir a carne assada em fogo à lenha, guarnecida pelo arroz branco, pelo mugango caramelizado também no forno e pelos tradicionais arroz e feijão – sem falar na salada de tomates e cebolas, mais batatas, cenouras e ovos cozidos – aguarda com expectativa a fartura das sobremesas da casa.
Lá estão, à extremidade oposta à posição do chefe, a ambrosia, a figada, a pessegada, as compotas de marmelo, figo e pêssego. E a atração máxima: a batatada, desta vez dividida nas opções tradicional e roxa.
Nhanhã adiciona aos sentimentos uma saudade: a do senador Ruy Barbosa, relembrado pela avidez com que se entregava duas, três, até quatro vezes aos doces que a tradição missioneira dos Pinheiro Machado havia juntado à sofisticação paulista da sua família. “Por que o senador baiano se afastou tanto?”.
A pergunta, que ela fizera algumas vezes ao marido, não lhe havia resultado em respostas aceitáveis. “Coisas da política”, lhe dissera e lhe repetira ele, sempre com a visível intenção de não levar adiante a conversa. “Coisas de homem”, assimilava ela, então, conformando-se.
O almoço, a sobremesa, o licor.
O senador despede-se da mulher com um beijo na testa. Nhanhã e os sobrinhos do casal relaxam na sala de jogos, o tempo a correr entre uma e outra dose. Ela deixa-se levar pelo suave inebriar da bebida e pelo prazer que lhe traz o gosto combinado de cacau e menta. Pensa na vida, quase alheia aos demais parentes com quem divide o espaço do momento. José Gomes, Ruy, Hermes da Fonseca, sua mulher, Nair de Teffé, o novo presidente, Wenceslau Braz e tantos outros e outras circulam pelo seu pensamento, em rápidas e sucessivas aparições que ocupam o seu tempo, até que uma reflexão se impõe, retomando uma dor que há muito tempo já não lhe afetava: os filhos que não deu ao senador.
Volta a sentir-se seca, a vida lhe passando em sucessivas décadas sem que a casa fosse se enchendo de descendentes. “José tem a política e eu, o que tenho?” – questiona-se, sofrendo com a culpa que sabe não ser sua, com a fatalidade que o destino lhe impôs. Olha com afeto para um e outro sobrinho, consola-se com o amor que lhes tem dedicado todo esse tempo, com as oportunidades que o parentesco com Pinheiro Machado lhes abriu, mas ainda assim sente-se frustrada.
“Por que não fui mais vezes com José Gomes a São Luiz das Missões?” – volta a indagar-se. “Por que não o acompanhei nas viagens à fazenda no Sul?” – ela afunda-se nas cobranças, sem valorizar o quanto o marido lhe é grato pelo comando da vida doméstica, pela disposição com que se redobra para receber os convidados de todos os dias, pelo talento com que mantém a mansão do Morro da Graça como uma sede informal de poder.
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
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