A Guerra de Cacimbinhas - Rio de Janeiro, O punhal - DiCacimbinhas

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sexta-feira, 10 de julho de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - Rio de Janeiro, O punhal


Um homem franzino circula despercebido pelo Largo do Machado, olhos fixos na movimentaĆ§Ć£o das ruas, submetido ao calor vespertino que prenuncia a primavera distante ainda alguns dias. Vestido a rigor, desde as polainas brancas que ressaltam os sapatos pretos em combinaĆ§Ć£o com o terno da mesma cor, ele ajeita a gravata negra para aliviar a pressĆ£o sobre o pescoƧo. Liberta o primeiro botĆ£o da camisa e respira fundo. FĆ“lego subitamente recuperado, apalpa no bolso direito do paletĆ³ o papel amassado em que descreve a quem interessar possa o ato ainda por fazer. Certifica-se de que tem, junto Ć  cintura, ajustado pelo cinto de couro, o punhal adquirido de segunda mĆ£o dias antes. 

Um automĆ³vel preto chama a atenĆ§Ć£o dos transeuntes. Como os demais, o homem segue o veĆ­culo com o olhar atĆ© vĆŖ-lo estacionar frente ao luxuoso Hotel dos Estrangeiros. Apressa o passo, aproxima-se a tempo de ver o passageiro que desce do veĆ­culo e certificar-se de que Ć© quem imagina: um homem de corpo atlĆ©tico, cabeleira farta mesmo para quem jĆ” avanƧa dos 60 anos. O motorista afasta o carro, lentamente, abrindo espaƧo para outros e para as diligĆŖncias e carruagens que tambĆ©m chegam ao hotel. Os poucos metros que separam os dois homens nĆ£o chamam a atenĆ§Ć£o dos demais presentes ao saguĆ£o. Acostumados Ć  circulaĆ§Ć£o de pessoas pelo estabelecimento, os funcionĆ”rios da portaria e do balcĆ£o ignoram o desconhecido, porque tĆŖm sua atenĆ§Ć£o voltada para o outro, cuja imagem Ć© pĆŗblica, conhecida e polĆŖmica. Entre o estranho e a autoridade dois outros homens surgem, dirigindo-se ao segundo com intimidade:

– Senador Pinheiro Machado! O que o traz aqui? – diz o primeiro, o deputado federal JosĆ© Cardoso de Almeida. 

– Por certo nĆ£o se trata da eleiĆ§Ć£o desta tarde – diz o outro, o tambĆ©m deputado Antonio Manoel Bueno de Andrade, referindo-se Ć  confirmaĆ§Ć£o do ex-presidente Hermes da Fonseca para uma vaga ao Senado pelo Rio Grande do Sul – pois pelo que sei, a votaĆ§Ć£o ficou para amanhĆ£. 



– Caros deputados, vim trocar umas ideias com o presidente paulista Albuquerque Lins – responde o senador JosĆ© Gomes Pinheiro Machado, fundador e agora presidente do Partido Republicano Conservador, vice-presidente do Senado e – nessa condiĆ§Ć£o – Ć”rbitro das eleiƧƵes em todo o PaĆ­s. 

Os trĆŖs parlamentares dirigem-se Ć  escada interna do Hotel dos Estrangeiros, circulando em fila entre as luxuosas dependĆŖncias em direĆ§Ć£o Ć  sala indicada pelos funcionĆ”rios para o encontro pretendido. 

Postado atrĆ”s dos colegas, destacando sua estatura privilegiada, o senador sente um forte impacto Ć s costas, seguido de uma dor profunda que intimida seus passos e lhe restringe a respiraĆ§Ć£o. Por instinto e com esforƧo, volta o olhar para trĆ”s e percebe o homem franzino, lĆ­vido, ostentando na mĆ£o direita o punhal jĆ” ensanguentado com que acabara de agredi-lo. 

– Canalha! – reage o senador, com o pouco de forƧas que lhe restam. 

SĆ³ entĆ£o seus dois acompanhantes percebem a gravidade do que acontece ao seu redor. Bueno de Andrade tenta amparar o senador. Cardoso, o porteiro Guilherme Neuman e o telefonista Diamantino Rodrigues da Paz correm em perseguiĆ§Ć£o ao agressor, primeiro dentro do prĆ³prio hotel, depois pelas ruas do bairro carioca. 

– Prendam o bandido! – brada Cardoso de Almeida aos transeuntes que, nas imediaƧƵes da PraƧa JosĆ© de Alencar, observam estupefatos a correria em torno de um homem armado. 

No saguĆ£o, Bueno de Andrade tenta descobrir o que aconteceu, falando com Pinheiro Machado, pensando ter sido ele vĆ­tima apenas de uma agressĆ£o material. 

– Como vocĆŖ explica isso? – dirige-se ele para o senador gaĆŗcho, que ensaia dois, trĆŖs passos em sua direĆ§Ć£o. 

– Apunhalaram-me – responde Pinheiro Machado, com dificuldade. 

Bueno de Andrade ainda duvida da gravidade da situaĆ§Ć£o, pensando ter havido apenas um soco Ć s costas do vice-presidente do Senado. Mas mesmo sustentado pelo colega, Pinheiro Machado perde o equilĆ­brio, obrigando o deputado a amparĆ”-lo pelos braƧos. 

O corpo de Pinheiro Machado parece pesar bem mais do que os seus 75 quilos nos trĆŖs ou quatro passos que os dois, juntos, dĆ£o em direĆ§Ć£o Ć  saleta Ć  esquerda do saguĆ£o. Vai desabando lentamente, vencendo o esforƧo de Bueno de Andrade, sobre um sofĆ”. 

– Socorro, chamem um mĆ©dico! – apela o deputado. 
 Um fio de sangue escorre pela boca de Pinheiro Machado que, ofegante, aguarda pela atenĆ§Ć£o pedida pelo colega. O presidente paulista aproxima-se da cena espantosa. 
– Como foi isso, meu bom Bueno? 
– Parece que o general estĆ” morrendo. 

Dirigem-se os dois para Pinheiro Machado. HĆ” muito sangue no rosto, no pescoƧo e no seu peito, quando chegam os funcionĆ”rios da AssistĆŖncia MĆ©dica. 

– Qual Ć© o estado dele? – questiona o presidente paulista apĆ³s o primeiro exame. 

– EstĆ” morto – responde o assistente, laconicamente, Ć  chegada do deputado Cardoso de Almeida. 

Acompanhado dos funcionĆ”rios do hotel com quem iniciara a perseguiĆ§Ć£o, o deputado informa a prisĆ£o do criminoso, em flagrante, na esquina da MarquĆŖs de Abrantes com a SĆ£o Salvador, pelos guardas civis Carlos de Oliveira Pimenta e Augusto Sande Ferreira. 

– As autoridades apreenderam a arma e impediram que o preso fosse agredido pelos populares e alvejado pelo motorista do senador. Embarcaram em um tĆ”xi com o preso em direĆ§Ć£o Ć  delegacia do Sexto Distrito, onde o delegado Nascimento e Silva fez o ato de flagrante, lavrado pelo escrivĆ£o Bergamini e quebrou a ordem do chefe de PolĆ­cia Aureliano Leal - de que o mantivessem em total incomunicabilidade – promovendo sua apresentaĆ§Ć£o Ć  imprensa, no inĆ­cio da noite. 

SOBRE O AUTOR  
Luiz AntĆ“nio NikĆ£o Duarte (Porto Alegre, 1953) Ć© formado pela PUCRS (graduaĆ§Ć£o/1977, especializaĆ§Ć£o, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiĆ”rioS e Emissoras Associados, Caldas JĆŗnior, Jaime CĆ¢mara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela AssociaĆ§Ć£o Nacional de Jornais, pela FederaĆ§Ć£o das IndĆŗstrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na dĆ©cada de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros RedaĆ§Ć£o em RP (SĆ£o Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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