A Guerra de Cacimbinhas - Rio de Janeiro, O interrogatório - DiCacimbinhas

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quinta-feira, 30 de julho de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - Rio de Janeiro, O interrogatório


– Nome: 
– Francisco Manço de Paiva Coimbra. 
– Pai: 
– Francisco de Paiva Coimbra 
– Mãe: 
– Maria de Jesus Coimbra. 
– Natural de: 
– Jaguarão, Rio Grande do Sul. 
– Profissão: 
– Atualmente venho fazendo biscates aonde possa. Mas já trabalhei como padeiro no Rio Grande do Sul e sentei praça na polícia, em São Paulo e em Niterói. 

O delegado Albuquerque Mello, responsável pelo inquérito, interroga Manço de Paiva. O Rio de Janeiro já vive sob o impacto do assassinato do senador Pinheiro Machado, as redações dos jornais movimentam suas equipes em busca de informações mais detalhadas sobre o crime, o telégrafo inunda o Brasil com notícias ainda esparsas. Enquanto nos meios políticos e jornalísticos a agitação se faz presente, na delegacia uma estranha tranquilidade marca o assassino, recém trazido em carro de praça pelos dois policiais militares que o detiveram. 

– Eu ia mesmo entregar-me às autoridades – diz o criminoso ao delegado. – Fugi das proximidades do hotel apenas para evitar ser morto pelos capangas do senador. 

Os policiais continuam o registro da ocorrência, sob a liderança do delegado: 
– Endereço: 
– Bento Lisboa, 120. 



Manço adianta que no local, uma casa de cômodos, ninguém o conhece por esse nome: – registrei-me com o nome de João Dias Régis – conta ele. 

É noite quando os policiais abrem as portas do gabinete do delegado para a imprensa conhecer o assassino do senador. 

– Nada de perguntas, só fotografias! A entrevista será dada pela Polícia – adverte o policial – numa ordem que repórter algum pretende cumprir. 

Manço Paiva tem muita sede e obtém antes do encontro com os repórteres o copo d’água que havia solicitado. Só então parece dar-se conta de que, naquele momento, há uma relação de causa e efeito entre ele e os jornalistas. Deixa-se observar quase sem registrar o que dizem dele, entre sussurros, num julgamento antecipado do qual ele próprio tem consciência do desfecho. Então, inicia o diálogo.

– Matei o senador Pinheiro Machado. Não incriminem a ninguém. Agi só. Matei-o porque era um homem nefasto. Eliminando-o, prestei um grande serviço ao País. Não tenho cúmplices – fez questão de declarar. 

– Não se arrepende? 
– Não. Apenas sinto-me abatido, um pouco constrangido. Compreendam: é o meu único crime, que repercute no País inteiro. 

– Tens pais vivos? 
– Só pai. Minha mãe, perdi-a aos 12 anos e dela recordo com infinita saudade. 

– Como se chama o seu pai? 
– Francisco de Paiva Coimbra. É dono de uma padaria no Rio Grande do Sul. É português, naturalizado brasileiro. 

– É político o seu pai?
– Sim, foi sempre muito pinheirista. Eu, federalista. Daí, a minha saída do Rio Grande. Fui criado em Cacimbinhas, apesar de ter nascido em Jaguarão. 

– Por que o ódio por Pinheiro Machado? 
– Vem desde a campanha pela presidência de Hermes da Fonseca e foi aumentando em face dos atos do governo do marechal, de quem Pinheiro Machado era o único responsável, precisando morrer pelo bem da Pátria. 

– Desde quando tinhas a intenção de matá-lo?
– Convenci-me dessa necessidade há dois meses, pela sua insistência em fazer de Hermes da Fonseca senador pelo Rio Grande do Sul. Tentei afastar de mim essa ideia, mas não consegui. 

– De onde saiu a arma do crime? 
– Comprei-a de segunda mão, por seiscentos réis. 

– Não tens emprego? 
– Quase me empreguei e desisti da idéia. Mas ao ler na véspera na Gazeta de Notícias sobre a eleição de Hermes da Fonseca, senti novamente vontade de matar Pinheiro Machado. 

– E como afinal deu-se o crime? 
– Estava no Largo do Machado conversando com um motorneiro quando vi chegar o carro de Pinheiro Machado. Entrei numa casa lotérica e escrevi o bilhete achado no bolso de meu paletó pelos policiais – ele repete o teor do papel apreendido pelas autoridades: 
“Caso eu seja morto pelos capangas deste homem que me leva a praticar este ato, não culpem a ninguém. Como rio-grandense, vingo os meus conterrâneos mortos nas ruas de Porto Alegre e como brasileiro a afronta atirada sobre um povo roubado e esfomeado”. 
– Acompanhei o carro com as vistas e percebendo que ia em direção a Botafogo, segui-o a pé. Ao ver o carro estacionado frente ao Hotel dos Estrangeiros, fui até lá. Pinheiro Machado dirigia-se a uma porta interna. Precipitei-me sobre ele com a faca e fugi a seguir. O resto vocês já sabem.

Esgotado, já na cela, Manço Paiva atira-se sobre o leito sem conforto. Como um filme, sua curta mas agitada vida se reproduz, intercalando na memória os sentimentos de alegria e de revolta. Pensa na mãe - morta no nascimento da irmã Chora - de quem só tem boas lembranças e imensa saudade. Pensa no pai, especialmente no mais recente encontro, há um ano, quando ambos tentaram superar divergências antigas, e nas promessas que não conseguiu cumprir, de ficar com a família e em harmonia. Pensa na irmã, mais jovem que ele e mesmo assim substituta da mãe que perderam tão cedo. Pensa na madrasta e nas vãs intermediações que tentou fazer entre o marido e o enteado. Pensa na vila em que viveu e de como seus limites foram incapazes de corresponder às expectativas que tinha e que o fizeram um aventureiro.  

SOBRE O AUTOR  
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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