Quando o nome do assassino surge ali, em meio às letras maiúsculas do telegrama recém chegado, um calafrio percorre a espinha do dublê de comerciante e jornalista João Amélio Noguez. "Francisco Manço de Paiva Coimbra, gaúcho de Jaguarão".
O editor alivia-se por um segundo, estimulado pela cidade referida, mas em seguida retoma o espanto: e se fosse um erro de informação, comum em circunstâncias como esta?
São nove da noite, a edição semanal já está pronta. Mas não há como ignorar um fato como o assassinato, à tardinha, no Rio de Janeiro, do senador José Gomes Pinheiro Machado, proeminente figura pública do Rio Grande do Sul e do Brasil, dirigente do Senado, árbitro eleitoral, tutor dos últimos presidentes da jovem república brasileira.
A fria noite de oito de setembro de 1915 impõe-se assim na redação do Faraute. O jornal da vila de Cacimbinhas recomeça a ser feito a partir da informação que a gentileza do agente postal Octavio Leão de Oliveira fez chegar ao amigo Noguez.
As informações ainda são restritas, a estupefação atinge o País inteiro, as circunstâncias do crime começam a se delinear nos telegramas que se sucedem e em pouco tempo forma-se uma razoável aglomeração de curiosos frente à sede da redação.
Cacimbinhas vive a penumbra das lamparinas públicas, a mal indicar suas poucas ruas aos igualmente raros transeuntes. Mas à calma habitual dos dias normais sucede-se, hoje, a agitação crescente. No posto telegráfico, incapaz de corresponder à ansiedade de seus usuários, Octavio remete ao jornal os mais agitados. O editor esmera-se em informá-los, e o faz em paralelo à obrigação imediata: redigir um texto inteligível sobre o crime que abalou o Brasil.
Em meio a ambas atribuições, Noguez conduz o pensamento para a vizinhança. Fosse o assassino quem ele pensa que é, como reagiriam sua família, seus amigos, seus inimigos e a comunidade aonde vivera parte de sua ainda curta existência?
Imagina a reação do padeiro Francisco, um homem de bem, curto nas palavras, mas que soubera atrair a simpatia de uma clientela a princípio tímida e a seguir, generalizada. "Pobre pai", diz para si mesmo o jornalista. Mas afasta de vez a hipótese, confiante na origem assinalada nas notícias iniciais.
Noguez escreve em meio ao agrupamento que o cerca um título para a coleção de telegramas que havia recebido e composto. Na tipografia, ainda seguido pelos curiosos, coloca a notícia à extrema esquerda da capa da edição semanal que estará sob as portas dos assinantes dentro de algumas horas. Cumpre com o esmero de sempre a função a que se dedica há alguns anos.
Encerrada a tarefa, joga-se sobre a cadeira giratória e põe-se a realizar sucessivos rodopios, para espanto dos que o assistem. Surpreendido por sua reação, breca o movimento com os próprios pés, olha um a um os dez companheiros e confidencia sua preocupação:
– Um dos textos que recebi fala que o assassino chama-se Francisco Manço de Paiva Coimbra...
Não termina de dizer o que queria, porque é interrompido por um conjunto de vozes:
... – O Manço do Chico?...
... – O guri do padeiro?...
... – Não pode ser verdade!
O jornalista busca tranqüilizá-los contando que os telegramas citam Jaguarão como cidade natal do assassino. Mas em vez de pacificar o ambiente, o que observa é um aprofundamento das reações.
– Mas foi a caminho entre Jaguarão e Cacimbinhas que o filho do padeiro nasceu! – fala um dos presentes.
Noguez lembra-se, então, de uma história um tanto mirabolante a respeito da família, e que a personalidade reservada do velho Chico impedia de levantar com precisão. Segundo se diz, o português soube por terceiros que em Cacimbinhas não havia padeiro e viu nessa situação uma oportunidade para melhorar de vida.
Com a mulher grávida, tomou o rumo da vila quase 200 quilômetros à frente, a caminho de Bagé, a bordo de uma diligência puxada por quatro parelhas de cavalos. Maria de Jesus Coimbra teve as dores do parto no meio do caminho e Manço Paiva nasceu entre as estações das vilas de Arroio Grande e Pedro Osório, obrigando a família a interromper a viagem e esperar a recuperação da mãe e da criança, para finalmente completar o itinerário previsto.
Já é quase meia-noite, os lampiões da pequena redação desenham sombras fantásticas nas paredes caiadas e, num acordo tácito, todos se dirigem para suas respectivas residências. Noguez dispensa os ajudantes da tipografia, repassa os fardos do Faraute entre a gurizada que vai distribuí-los nas residências e lentamente dá duas voltas na fechadura da ampla casa em que está instalado o jornal.
O Faraute estampa na capa de sua recém impressa edição veemente condenação ao crime. Cacimbinhas é um município em busca de sua autonomia, produzindo carne, couro e lã, em que republicanos e federalistas dividem as mesmas ruas, às vezes os mesmos campos e as mesmas famílias.
A caminho da residência, na semi-escuridão das ruas de chão batido e calçadas irregulares, ele começa a pensar na edição seguinte. Em mais uma semana, terá informações relevantes para dar sequência ao assunto, podendo inclusive reproduzir o que trariam A Federação e o Correio do Povo, os diários porto-alegrenses, assim como o Diário Popular e A Opinião Pública, de Pelotas, e o Correio do Sul, de Bagé.
Ao jogar-se sobre a cama aquecida pelo corpo da mulher, imagina a reação do intendente, Ney de Lima Costa, com quem já havia evidenciado diferenças que atribui ao excessivo autoritarismo do provisório, que na liderança de uma comunidade buscava subjugá-la como se seu chefe fosse.
– Ney já deve saber do crime - imagina Noguez, ao buscar abrigo no calor de Amália que, receptiva, sequer imagina quantas novidades o marido reserva. .
SOBRE O AUTOR
O editor alivia-se por um segundo, estimulado pela cidade referida, mas em seguida retoma o espanto: e se fosse um erro de informação, comum em circunstâncias como esta?
São nove da noite, a edição semanal já está pronta. Mas não há como ignorar um fato como o assassinato, à tardinha, no Rio de Janeiro, do senador José Gomes Pinheiro Machado, proeminente figura pública do Rio Grande do Sul e do Brasil, dirigente do Senado, árbitro eleitoral, tutor dos últimos presidentes da jovem república brasileira.
A fria noite de oito de setembro de 1915 impõe-se assim na redação do Faraute. O jornal da vila de Cacimbinhas recomeça a ser feito a partir da informação que a gentileza do agente postal Octavio Leão de Oliveira fez chegar ao amigo Noguez.
As informações ainda são restritas, a estupefação atinge o País inteiro, as circunstâncias do crime começam a se delinear nos telegramas que se sucedem e em pouco tempo forma-se uma razoável aglomeração de curiosos frente à sede da redação.
Cacimbinhas vive a penumbra das lamparinas públicas, a mal indicar suas poucas ruas aos igualmente raros transeuntes. Mas à calma habitual dos dias normais sucede-se, hoje, a agitação crescente. No posto telegráfico, incapaz de corresponder à ansiedade de seus usuários, Octavio remete ao jornal os mais agitados. O editor esmera-se em informá-los, e o faz em paralelo à obrigação imediata: redigir um texto inteligível sobre o crime que abalou o Brasil.
Em meio a ambas atribuições, Noguez conduz o pensamento para a vizinhança. Fosse o assassino quem ele pensa que é, como reagiriam sua família, seus amigos, seus inimigos e a comunidade aonde vivera parte de sua ainda curta existência?
Imagina a reação do padeiro Francisco, um homem de bem, curto nas palavras, mas que soubera atrair a simpatia de uma clientela a princípio tímida e a seguir, generalizada. "Pobre pai", diz para si mesmo o jornalista. Mas afasta de vez a hipótese, confiante na origem assinalada nas notícias iniciais.
Noguez escreve em meio ao agrupamento que o cerca um título para a coleção de telegramas que havia recebido e composto. Na tipografia, ainda seguido pelos curiosos, coloca a notícia à extrema esquerda da capa da edição semanal que estará sob as portas dos assinantes dentro de algumas horas. Cumpre com o esmero de sempre a função a que se dedica há alguns anos.
Encerrada a tarefa, joga-se sobre a cadeira giratória e põe-se a realizar sucessivos rodopios, para espanto dos que o assistem. Surpreendido por sua reação, breca o movimento com os próprios pés, olha um a um os dez companheiros e confidencia sua preocupação:
– Um dos textos que recebi fala que o assassino chama-se Francisco Manço de Paiva Coimbra...
Não termina de dizer o que queria, porque é interrompido por um conjunto de vozes:
... – O Manço do Chico?...
... – O guri do padeiro?...
... – Não pode ser verdade!
O jornalista busca tranqüilizá-los contando que os telegramas citam Jaguarão como cidade natal do assassino. Mas em vez de pacificar o ambiente, o que observa é um aprofundamento das reações.
– Mas foi a caminho entre Jaguarão e Cacimbinhas que o filho do padeiro nasceu! – fala um dos presentes.
Noguez lembra-se, então, de uma história um tanto mirabolante a respeito da família, e que a personalidade reservada do velho Chico impedia de levantar com precisão. Segundo se diz, o português soube por terceiros que em Cacimbinhas não havia padeiro e viu nessa situação uma oportunidade para melhorar de vida.
Com a mulher grávida, tomou o rumo da vila quase 200 quilômetros à frente, a caminho de Bagé, a bordo de uma diligência puxada por quatro parelhas de cavalos. Maria de Jesus Coimbra teve as dores do parto no meio do caminho e Manço Paiva nasceu entre as estações das vilas de Arroio Grande e Pedro Osório, obrigando a família a interromper a viagem e esperar a recuperação da mãe e da criança, para finalmente completar o itinerário previsto.
Já é quase meia-noite, os lampiões da pequena redação desenham sombras fantásticas nas paredes caiadas e, num acordo tácito, todos se dirigem para suas respectivas residências. Noguez dispensa os ajudantes da tipografia, repassa os fardos do Faraute entre a gurizada que vai distribuí-los nas residências e lentamente dá duas voltas na fechadura da ampla casa em que está instalado o jornal.
O Faraute estampa na capa de sua recém impressa edição veemente condenação ao crime. Cacimbinhas é um município em busca de sua autonomia, produzindo carne, couro e lã, em que republicanos e federalistas dividem as mesmas ruas, às vezes os mesmos campos e as mesmas famílias.
A caminho da residência, na semi-escuridão das ruas de chão batido e calçadas irregulares, ele começa a pensar na edição seguinte. Em mais uma semana, terá informações relevantes para dar sequência ao assunto, podendo inclusive reproduzir o que trariam A Federação e o Correio do Povo, os diários porto-alegrenses, assim como o Diário Popular e A Opinião Pública, de Pelotas, e o Correio do Sul, de Bagé.
Ao jogar-se sobre a cama aquecida pelo corpo da mulher, imagina a reação do intendente, Ney de Lima Costa, com quem já havia evidenciado diferenças que atribui ao excessivo autoritarismo do provisório, que na liderança de uma comunidade buscava subjugá-la como se seu chefe fosse.
– Ney já deve saber do crime - imagina Noguez, ao buscar abrigo no calor de Amália que, receptiva, sequer imagina quantas novidades o marido reserva. .
SOBRE O AUTOR
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
Clique aqui para acompanhar o livro A GUERRA DE CACIMBINHAS.
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