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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - Cacimbinhas, As demissões


Duas demissões inaceitáveis são apontadas pelos anti-Ney como origem da oposição crescente que vem sofrendo: a do ex-intendente e coronel honorário João Pereira Madruga e a do inspetor e tenente João Manoel Mendonça, ambos heróis de 1893 na defesa dos ideais republicanos e da liderança de Júlio de Castilhos. 

Aos 64 anos, Madruga, fazendeiro na localidade do Baú, havia sido o primeiro intendente de Cacimbinhas, nomeado em 1894 pelos republicanos tão logo se regularizou a situação política nacional após a derrota da monarquia. 

Em torno de sua veneranda figura costumam reunir-se as atuais lideranças partidárias municipais, numa representação que desagrada o intendente provisório. Mas houve um pecado mais mortal que esse para o velho republicano. Na condição recente de subintendente da sede da vila, cargo auxiliar ao de Ney de Lima Costa, ele negou-se a assinar um documento de adesão à candidatura do provisório para as eleições municipais. A ruptura entre o antigo e o novo intendente ocupa as páginas dos dois jornais locais. 

Para O Município, “órgão do Partido Republicano”, o velho líder local é tratado simplesmente como João Pereira Madruga na notícia que informa sua dispensa. Para o Faraute, “órgão dos interesses do Município”, essa denominação rouba-lhe o posto de coronel, “ganho em defesa dessa República”, da qual o “provisório” vive hoje. 

Madruga tenta poupar a família dessa desagradável disputa. Embora tenha vendido propriedades e animais para enfrentar as despesas das constantes revoluções em que se envolveu, não lhe fazem falta o cargo e o salário de subintendente. 

“Estava a serviço do Partido e da comunidade”, diz ele à mulher, acalmando-a após a leitura dos desaforos impressos no jornal sob orientação de Ney. 

O coronel entrega à esposa o exemplar do Faraute que lhe faz o desagravo. 
– Veja que nem só de mal falam de mim – observa. 

Ela alivia-se com o que lê: “(...) É Madruga, o velho republicano de todos os tempos – olhe ‘bem! – de todos os tempos, que em prol de seus ideais sacrificou os bens da fortuna. É o velho republicano que de noventa e dois a noventa e cinco empunhou a espada em defesa desse governo que Vossa Senhoria” – o texto é endereçado a Ney – “representa seu algoz e mínima parcela (...)”. 

A mulher entusiasma-se com a leitura, a ponto de vencer as barreiras usuais e de surpreender o marido com um carinho mais acintoso. – Leia também o que o Faraute diz do Mendonça – recomenda ele. 

Ela o obedece, como sempre. “João Manoel Mendonça é o tenente que, repleto de coragem e abnegação, assistiu à tremenda carnificina do sítio do Rio Negro, ao lado do saudoso gaúcho e incomparável herói Maneco Pedroso, o homem que depois de oferecer dinheiro por sua vida, num gesto de coragem sobrenatural, calmo despiu seu colarinho e disse: ‘mata, porque matas um republicano’. Nesse sítio lutou o tenente Manoel Mendonça, até que, baldados os meios de salvamento e exaustos de recurso, aos gritos de ‘salve-se quem puder’, convidou alguns de seus companheiros e arremessaram-se contra aquela muralha de lanças”. 

O indignado texto do jornal lembra, ainda dirigindo-se ao forasteiro intendente de Cacimbinhas, que Mendonça foi o único que se salvou daquele enfrentamento, numa fuga de três dias em direção a Bagé, apresentando-se então às forças comandadas pelo General Carlos Telles, engajando-se numa luta que perdurou por outros 44 dias. 

Ingressando na Intendência por concurso, o tenente foi demitido sob o argumento de economia aos cofres municipais – o mesmo usado para dispensar Madruga. Ela continua a leitura: “Enquanto, senhor Provisório, esses homens - que Vossa Senhoria demitiu (...) por não aderirem a uma causa que consideram injusta - tostavam suas faces na fumaça do canhão em prol dessa República sonhada por Benjamim Constant e consolidada por Júlio de Castilhos, o mestre divino, e Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro que até a morte o respeitou, só ceifando-lhe a vida depois de cumprida sua missão; os vossos companheiros de hoje - aqueles que planejaram com Vossa Senhoria o atentado que cometestes à face sublime do Rio Grande e do qual sois o único responsável, porque aos vossos cúmplices de tenda falta a coragem e a hombridade precisa para assumirem a responsabilidade que lhes cabe - viviam nas coxilhas, aquentando-se com os raios benéficos do Astro Rei e só o abandonavam para fruir a aragem fresca do mato e deliciarem-se com o canto mavioso e doce do sabiá, sempre que sentiam o cheiro da pólvora inimiga”. 

A mulher de Madruga sente-se reconfortada com o que escreveu o Faraute. Mas pondera ao marido que nem todos na vila leem os dois jornais, temendo que a influência d’O Município predomine. 

– Não se preocupe. A maioria do povo está conosco e esse provisoriozinho não tem a menor chance de se viabilizar, a não ser pela força. 

– Outra revolução? – indaga ela, lembrando o pavor que a família enfrentou ao longo dos últimos anos do século anterior, e já acostumada à calma vigente nas duas primeiras décadas do atual. 

– Se for preciso, vamos às armas. Mas penso que Borges de Medeiros saberá distinguir entre os fiéis de sempre e os adesistas de última hora – responde Madruga, consultando anotações em um antigo caderno em que traz relacionados os nomes dos que não lhe têm faltado lealdade. 

– Já estou velho para outra revolução. 
– Mas nós não – reage o filho Gregório, que chega em visita inesperada ao lado do irmão João Francisco, ambos aproximando-se do pai e da madrasta, envolvendo-se todos num abraço protetor. 

O casal recebe os rapazes com surpresa pelo inesperado da visita. 

– Lemos o que escreveu O Município e estamos prontos para liquidar esse pasquim – afirma João Francisco. 
– Será o pretexto que eles esperam para iniciar um confronto maior – interpreta o patriarca dos Madruga. 
– Portanto, se acalmem e leiam o que escreveu o Faraute. A madrasta lhes estende o jornal, que leem em conjunto. O orgulho que sentem é o mesmo que experimentam Madruga e a mulher, ainda que por razões diversas.   

SOBRE O AUTOR  
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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