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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - Cacimbinhas, A notícia


No café da manhã, com o Faraute à mesa, Noguez precisa dar à mulher explicações detalhadas sobre o atraso na informação.

“Abatido por mão assassina tombou no Rio de Janeiro a figura extraordinária do egrégio senador, general José Gomes Pinheiro Machado”, registra a primeira página do jornal que ela lê no café da manhã. 

A edição inclui uma rápida biografia do falecido e se encerra anunciando o profundo pesar do Partido Republicano de Cacimbinhas, que, “reverente, se curva ante a memória do preclaro chefe” do Partido Republicano Conservador. 

– Mas ias saber mesmo, horas depois! - justifica-se o jornalista, ao ser cobrado. 
– Não quis te acordar. 
– Para isso não, mas acabaste me acordando mesmo - reclama a Amália, inconformada em estar sabendo de tudo junto com a vizinhança. 

Em frente à praça da vila, junto à esquina da Intendência, uma aglomeração fora do normal aguarda pelo provisório, já no início da manhã. O interino chega ao gabinete de trabalho vestido de preto, com uma tarja de igual cor sobre o ombro direito da casaca de lã, em semblante de circunspecção que denuncia o conhecimento da notícia e a sua perturbação com o acontecido. 



Sem raízes em Cacimbinhas, para onde fora por determinação partidária no cumprimento de sua atribuição judicial a seguir transformada na condução da administração pública, pede, de imediato, que sejam providenciadas chamadas telefônicas para o Palácio de Governo e para a Assembleia Legislativa. Buscará, com seus pares, as notícias que os jornais não trazem, os bastidores desse crime bárbaro e suas consequências para a política do Brasil e do Rio Grande. 

A secretária Joana informa-o de que há congestionamento de pedidos à telefônica e que as ligações poderão levar mais de um dia para se completar. Ele mantém a solicitação e determina a um auxiliar que busque junto ao Telégrafo Municipal informações mais recentes. 

Pensa em pegar a estrada para a Estação de Pedras Altas, mas uma viagem à Capital lhe tomará todo o dia até Rio Grande, por via ferroviária, e meio-dia desde lá, por via fluvial. E sequer havia solicitado audiência ao presidente em exercício, Salvador Pinheiro Machado, irmão do senador morto. 

Ney dita um telegrama póstumo à secretária, para que providencie seu envio a Salvador e ao próprio presidente Borges de Medeiros, embora licenciado por motivo de saúde. Só então abre as portas do gabinete para os correligionários, ainda que não julgue adequada essa expressão para quase nenhum deles. 

Os republicanos históricos aboletam-se nas cadeiras do gabinete e mantêm-se por segundos em disciplinado silêncio, à espera de uma palavra do intendente provisório. 

Na ausência de sua manifestação, cabe ao sexagenário coronel João Pereira Madruga, o primeiro intendente da vila, enfatizar, em nome dos demais, as condolências do grupo. Ney economiza palavras, até que outro dos presentes traga à luz a suspeita sobre a origem do criminoso. 

O sempre formal advogado, juiz e provisório esbraveja um palavrão que enrubesce a secretária e a todos espanta. É a primeira vez que lhe veem pedir desculpas publicamente. Envergonhada, a funcionária se retira, buscando refúgio em seu espaço em frente ao gabinete, mas ainda sob o calor da expressão ouvida. 

Ney indaga de cada um por detalhes sobre Manço de Paiva, o pai, a mãe, se tinha irmãos, de que linha política eram, o que faziam, como haviam chegado à vila...

À profusão de questionamentos, a que todos tentam resolver, o provisório acrescenta outras, parecendo mais interessado em perguntar do que em obter respostas, até que se prostra sobre a própria mesa, mais uma vez num gesto incomum para as suas conhecidas formalidades, e balança de leve as pernas no ar. Depois, num impulso, gira o corpanzil sobre si mesmo, lançando-se à cadeira, onde se estatela sem que ninguém ouse dirigir-lhe a palavra. 

Repete, praticamente, uma a uma as respostas às perguntas que parecera não ouvir segundos antes. Então, exclama: 
– Filho de um pinheirista! 
Sim, Francisco de Paiva Coimbra, o pai, é um republicano convicto, um pinheirista como Borges, como Salvador e como Ney, e nisso reside boa parte de seus desentendimentos com o filho. 

Por conta dessas diferenças, Manço, cuja personalidade retraída lembra o pai, havia deixado a casa da família alguns anos antes, primeiro para trabalhar na padaria de um tio em Rio Grande, depois, buscando fazer a vida em Pelotas, em Porto Alegre, em São Paulo e no Rio de Janeiro. 

Ao receber cada nova informação, Ney vai firmando a conclusão de que o matador de Pinheiro Machado é mesmo um cacimbinhense, ainda que pudesse não ter nascido na vila. Com um soco sobre a mesa, expõe aos que o ouvem a promessa de que, confirmada essa suspeita, a comunidade precisa dar ao Brasil uma prova de redenção, uma palavra de afeto, um gesto de desagravo. 

– Cada um de nós já telegrafou ao presidente, ao presidente em exercício e ao secretário Protásio Alves - diz o coronel Madruga. 

– Eu enviei um telegrama também ao presidente da República e à viúva - completa Hippólyto Ribeiro Júnior. 
– Precisamos de muito mais do que isso! - reage o intendente. 

Entre os presentes, a sua provisoriedade gera um contido desconforto, já que há muitos pretendentes ao cargo, por eleição ou indicação presidencial. Não surgira indício algum de que Ney convocaria eleições municipais, o que estimula especulações - como a de que espera tornar-se mais conhecido pela comunidade para candidatar-se ele próprio pelo Partido Republicano. 

O fazendeiro Hippólyto Ribeiro Junior já havia explicitado o seu interesse. Líder republicano local, filho de um herói da Guerra do Paraguai e da Revolução de 1893, adquiriu grande propriedade de terras em Cacimbinhas e lá se instalou. 

Companheiros na Política e na Maçonaria, João Amélio Noguez e Hippólyto Ribeiro Junior mantêm sólida amizade, a ponto do Faraute veicular na própria capa de muitas de suas edições anúncios e matérias favoráveis à candidatura do coronel. 

Ney acompanha com visível interesse e disfarçada irritação a pretensão política do correligionário.  

SOBRE O AUTOR  
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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