Contra todas as indicações médicas e familiares, o presidente Borges de Medeiros faz-se presente ao Cemitério da Santa Casa de Misericórdia.
Sua única precaução foi chegar ao local quase uma hora antes de encerrada a procissão, poupando-se, pelos conhecidos problemas de saúde, da comoção que desde a manhã percorre a cidade.
O condutor do carro oficial que lhe havia sido posto à disposição pelo Palácio de Governo, apesar da licença médica que se prolonga por quase todo o ano, fez um percurso alternativo para fugir ao congestionamento causado pelo féretro.
Chefe do PRR, cargo do qual não se retirou, Borges abriga-se à sombra do túmulo do patriarca Júlio de Castilhos, um imponente monumento mandado erigir pela administração estadual em homenagem ao líder morto prematuramente 12 anos antes, aos 43 anos de idade, vítima de um carcinoma na laringe.
“Os vivos serão sempre e cada vez mais governados pelos mortos”.
A inscrição que rivaliza em atenção com a arquitetura vertical do mausoléu chama – como sempre - a atenção do presidente licenciado.
– Auguste Comte foi um sábio e suas palavras hão de ser atuais para sempre – comenta Octávio Rocha, secretário particular de Borges, que o acompanha nessa tarde de fim de inverno em Porto Alegre.
– Eu mesmo tenho por regras as orientações de Castilhos – reage o líder político à ponderação de seu subalterno, como se tal afirmação fosse novidade.
O homem que a doença afastara do exercício do seu terceiro quinquênio como presidente do Rio Grande do Sul impõe silêncio a quem o observa. Octávio Rocha e capitão Lourenço Galant, ajudante de ordens, afastam-se respeitosamente e assistem ao chefe em aparente oração. Borges de Medeiros balbucia palavras inaudíveis àquela distância, conclui seu recolhimento e procura com o olhar pelos dois assessores, que, parecendo captar seu pensamento, se reaproximam e o avisam de que os arredores já começam a receber populares.
– É gente que não pôde acompanhar o féretro e quer participar do enterro de Pinheiro Machado – comenta o ajudante de ordens.
A localização do cemitério, nos altos do histórico bairro da Azenha, permite aos três uma observação privilegiada das partes baixas da cidade.
– Nem sinal do féretro – diz Octávio Rocha, enquanto Galant providencia junto à gerência do cemitério uma acomodação mais apropriada para o presidente do Estado.
Borges não parece enfraquecido da já prolongada enfermidade que há meses o fez transmitir o cargo ao vice-presidente Salvador Ayres Pinheiro Machado.
Mas conforta-se ao ser conduzido para a área administrativa do cemitério, onde pode sentar e aguardar os acontecimentos.
Já uma multidão começa a chegar ao local, obrigando a polícia administrativa a disciplinar o trânsito de entrada, exclusivamente pelo portão principal.
Ao mesmo tempo, o préstito se aproxima, mais de duas horas depois de deixar a Intendência e seguir trajeto através da Avenida Sete de Setembro, Praça Senador Florêncio, Rua dos Andradas, Rua Vigário José Ignácio, Rua General Vitorino, Rua Dr. Flores, Praça Conde de Porto Alegre, Campo da Redenção, Avenida Azenha.
Os veículos que conduzem as centenas de coroas enviadas às autoridades gaúchas em homenagem ao senador Pinheiro Machado são os primeiros a chegar. Os andores vêm a seguir, levados para o fundo da avenida principal do cemitério, enquanto a carreta com o caixão aguarda o desembarque no portão.
Salvador Pinheiro Machado, o presidente do Estado em exercício, surge à frente das autoridades que chegam, imediatamente juntando-se a Borges de Medeiros e com ele trocando um emocionado abraço.
Familiares o acompanham, recebem idêntica manifestação do presidente licenciado e todos seguem com o cortejo para as proximidades do túmulo de Júlio de Castilhos. Um imprevisto discurso do coronel Zoroastro Cunha, conselheiro municipal do Distrito Federal, inicia o cerimonial de sepultamento do líder político assassinado onze dias antes.
SOBRE O AUTOR
SOBRE O AUTOR
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
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