A Guerra de Cacimbinhas - 4 de março - Porto Alegre - O pedido - DiCacimbinhas

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quinta-feira, 9 de abril de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - 4 de março - Porto Alegre - O pedido

Dentista por formação, rábula por vocação e interessado em ingressar na vida política, Ney de Lima Costa sai frustrado de sua audiência no Palácio do Governo, por não ter conseguido se encontrar com o presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros. Por isso, arquiteta o passo seguinte ao encontro breve que acaba de encerrar com o secretário do governante: uma carta, que esboça mentalmente, escolhendo as palavras, na expectativa de que seu pleito seja acolhido pelo chefe do Partido Republicano Rio-grandense. 

De volta à residência, recolhe-se ao escritório tão logo cumprimenta Percília, envolvida com o casal de filhos e a ordem doméstica. Em letra caprichada, escreve no bloco da Escola Dentária do Rio Grande do Sul: 

“Estive em Palácio e ao Dr. Renato Costa expus a minha pretensão. Como, porém, desejava falar pessoalmente a Vossa Excelência e não foi possível tomo a liberdade de escrever esta na convicção de que merecerá atenção. Possuo amigos que também o são de Vossa Excelência e a quem poderia solicitar alguma coisa em meu favor junto a Vossa Excelência. Não o fiz, porém, porque sendo Vossa Excelência o chefe supremo do meu partido, se for possível saberá atender-me, a despeito de intermediários que, apesar da boa vontade, não usam da sensibilidade de quem sente”. 

Relê as partes iniciais da correspondência, reconhecendo alguma redundância e o risco de ser interpretado como bajulador da autoridade máxima do Rio Grande do Sul. Mas não se constrange, por considerar que os poderosos precisam dessa prática. Então, prossegue: 

“Estou com minha esposa emprazada pelos médicos a abandonar esta cidade e não dispondo eu de recursos próprios vejo-me ante o seguinte dilema: ou apelar para o bondoso coração do respeitável Chefe do meu Partido, ou deixar que minha esposa espere alguma graça da Natureza”. 

Ney certifica-se de que Percília esteja distante do escritório, por saber que sua curiosidade não lhe permitiria observá-lo escrevendo sem identificar o conteúdo e o destinatário. E continua. “Existe vago o juizado de Cacimbinhas, e ser-me-ia extraordinariamente útil se Vossa Excelência se dignasse de nomear-me para dito cargo. Creio não me faltam capacidades política e intelectual para exercê-lo. Seguirei, no exercício do cargo, o pensamento de Vossa Excelência, como Chefe Supremo do Partido e por minha causa jamais haverá qualquer solução de continuidade na política do município”. 

O jovem chefe de família pondera na carta a Borges de Medeiros, sobre não ser diplomado em Direito: “Mas julgo-me competente no assunto, pois estudo-o com carinho e se ainda não conquistei o grau foi simplesmente por falta de recursos pecuniários”. 

Cada frase é calculada – como o presidente do Estado a receberá e que solução dará ao que lhe é solicitado. Como membro do PRR, Ney já ouviu falar dos problemas de saúde de Borges de Medeiros, confiando, assim, que ele será sensível aos argumentos que apresenta no pedido de nomeação como juiz de Cacimbinhas. 

Não é um lugar sem importância neste início de século XX no Rio Grande do Sul. Está estrategicamente localizado a meio caminho entre Pelotas e Bagé, dois dos maiores municípios gaúchos, onde a pecuária, base da economia estadual, dá sinais de pujança e antevê um futuro promissor. Além disso, lá está a Estação de Pedras Altas, e o trem é o transporte do presente, que encurta distâncias e dá mais conforto às viagens que as feitas em automóveis, porque as estradas, quando existem, são precárias. 

Tudo isso ele tem em conta na opção que agora busca através dos contatos políticos. Ainda que levado por uma injunção inesperada como a saúde da mulher, Ney avalia estar no Interior a sua grande oportunidade profissional. “Acho, pois, que não me faltam competência e ardor político para deixar de merecer a confiança de Vossa Excelência” - argumenta. “No entanto, creia Vossa Excelência, apesar da urgente necessidade de abandonar a Capital, qualquer solução de Vossa Excelência recebê-la-ei como soldado disciplinado, pois entendo que a confiança não se pode impor”.

Encerrada a redação, lambe a extremidade do envelope branco em que havia depositado a carta, certifica-se de que está bem fechado e prepara-se para a resposta que, espera, há de vir nos próximos dias.

SOBRE O AUTOR 
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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