O plenário do Senado é um deserto desanimador. Pinheiro Machado percebe terem sido vãos os telegramas que havia enviado às representações dos diversos estados, pedindo presença nessa quarta-feira posterior ao feriado da Independência. “Devem estar todos em Petrópolis”, pensa ele, com uma ponta de inveja, outra de decepção. “Bem que Nhanhã me havia dito para irmos também nós”, continua a refletir. Mas o reconhecimento do marechal Hermes da Fonseca como senador eleito pelo Rio Grande do Sul era prioritário – ao menos para o líder republicano – como forma de desagravar sua impoluta figura do massacre a que vinha sendo submetido desde que venceu Ruy Barbosa na disputa pela presidência da República, em 1910, e especialmente depois que a deixara, em 1914, sucedido pelo seu ex-vice-presidente, Wenceslau Braz.
Pinheiro Machado tem em mãos exemplares dos principais jornais do Rio de Janeiro, quase a totalidade deles responsabilizando-o pelos protestos das ruas, exatamente contra a confirmação do marechal como senador pelo Rio Grande. “Culpada é essa imprensa de pernas-finas” – raciocina – “porque está a soldo de ideias contrárias à consolidação da República”. Busca na memória a origem dessa oposição que vem sofrendo ao longo dos anos, e por sua mente circulam, como num filme, as cenas do jornalista Edmundo Bittencourt caindo sobre as próprias pernas, atingido por um tiro que lhe desfechara nos quadris em duelo na praia do Leblon, oito anos atrás.
“Dei-lhe um tiro na bunda para poupar-lhe a vida, mas também para que jamais me esquecesse”, relembra o político gaúcho, deliciando-se com a superioridade demonstrada então. “Parece que nunca me esquecerá mesmo” – continua ele, em pensamento. “Tantos jornalistas formou desde então o Correio da Manhã, que hoje tenho uma oposição dentro do Congresso e do Governo, e outra nas redações”.
Na presidência da sessão, que lhe cabe na condição de vice-presidente do Senado - já que o cargo máximo da Casa é apenas simbólico, para o vice-presidente da República, Urbano dos Santos - Pinheiro Machado puxa pela corrente o relógio do bolso da casaca e observa: passam quarenta e cinco minutos da uma da tarde.
Não há nada mais que justifique quase uma hora de atraso no início dos trabalhos, que ele então abre e a seguir os encerra, por falta de quorum, pedindo à assessoria da Mesa Diretora que sejam expedidos novos telegramas convocando os senadores para a sessão no dia seguinte.
Não se dá por derrotado, contudo. Está certo de que a confirmação de Hermes da Fonseca como senador pelo Rio Grande respeitará a escolha dos gaúchos, sob sua orientação e a do presidente estadual Borges de Medeiros. Pinheiro Machado circula pelo plenário, visita rapidamente senadores presentes, como Arthur Lemos e Índio do Brasil, e então chama o motorista Garibaldi Borges para umas visitas pela cidade.
Começam pela sede do Partido Republicano Conservador, passam depois pela Cooperativa dos Militares – ambos na Avenida Central – até ele indicar o próximo itinerário: o Hotel Central, na praia do Flamengo. O empregado do senador sabe o que significa tal convocação. Sem atividades no Senado, sem compromissos na mansão da Rua Guanabara até a noite, o senador conta com a cumplicidade do subalterno para uma agenda não-protocolar, ocupando assim parte da tarde.
Não faz muitos meses que Pinheiro Machado anestesiou a consciência das culpas que enfrentou no início desses compromissos. Casado há quase 40 anos, sempre teve na mulher a companheira ideal – linda, rica, dedicada, submissa ainda que um tanto voluntariosa, companheira para quase todas as horas, desde que estas não incluíssem as viagens anuais às terras de São Luiz das Missões e as mensais à Fazenda Boa Vista, em Campos – não fosse por um detalhe: os filhos que ela não lhe pôde dar, numa limitação a princípio aceita mas que, com o passar dos anos e a ausência de herdeiros para as posses e as ideias, lhe foi pesando cada vez mais, a ponto de afastá-los das intimidades conjugais.
As confidências, Pinheiro Machado guarda para dois amigos – ambos, por sinal, ainda jovens: os jornalistas e escritores Gilberto Amado e João do Rio, o primeiro redator de O Paiz, um dos poucos que ressalta o papel do senador gaúcho como conservador da República, desde junho às voltas com a tragédia pessoal de ter assassinado um desafeto; e o segundo, do Correio da Manhã, de onde lhe vem a mais firme oposição. Ambos sabem onde o líder republicano exercita sua masculinidade desde há mais de dez anos, e se mantêm leais a ponto de não deixar registros.
É para esse mesmo endereço de sempre que se dirige o vistoso automóvel do vice-presidente do Senado, nas proximidades do centro do Rio de Janeiro. Quando finalmente ele retorna ao carro, ordena o novo destino ao chofer: “Vamos ao Hotel dos Estrangeiros conversar com os paulistas”. Parece feliz e confiante de que, amanhã ou depois, finalmente conseguirá confirmar o nome do ex-presidente Hermes da Fonseca como senador pelo Rio Grande do Sul.
SOBRE O AUTOR
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
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