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quinta-feira, 20 de agosto de 2020

A Guerra de Cacimbinhas - Rio de Janeiro, A autópsia


Nhanhã percebe serem vãs suas resistências. Não queria que a combativa vida do marido cujo corpo lhe foi dado a velar há poucas horas sofresse invasões que julga desnecessárias, mas submete-se à lei, lembrando que esse era um dogma para Pinheiro Machado. 

E a lei exige autópsia em casos de crime como o que foi cometido na véspera. Então se retira do quarto do casal, entregando o cadáver aos médicos legistas que vão dissecá-lo para juntar o laudo às investigações. 

Há uma profunda dor na sua tomada de decisão. Não bastasse a perda imposta pela mão assassina, as últimas horas foram de intensas e dolorosas negociações com as autoridades, numa inesperada disputa pelo corpo do morto, finalmente liberado para o velório no Morro da Graça, sob a condição de traslado para a sede do Senado e, a seguir, para o Rio Grande do Sul. 

Nhanhã se consome em tristeza, mas aplaca a raiva, recorrendo aos céus pela paz que não consegue encontrar. O que vai ser de sua vida, sem a condução firme de Pinheiro Machado? 

Não tem tempo para buscar respostas, às voltas com as centenas de pessoas que lhe trazem um consolo e uma palavra de pesar. Desde o ministro do Interior, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, ainda no Hotel dos Estrangeiros, até políticos que havia pouco faziam oposição ao marido. 


No início da manhã, Julio César Susano Brandão e Diógenes de Almeida Sampaio, os dois peritos enviados ao Morro da Graça, despem o poderoso político gaúcho, vistoriando as marcas da agressão que o levou à morte. 

Nos salões térreos da mansão, algumas centenas de pessoas circulam e estranham a ausência do caixão com o corpo. Ao irmão Ângelo Pinheiro Machado cabe informá-los das providências que se fazem necessárias em casos como esses. Nhanhã recebe automaticamente as condolências, o pensamento voltado para o andar de cima, para os cortes que os médicos fazem no cadáver do senador. 

Na ordem natural da vida, ela vinha se preparando para uma perda dessas. Mas não esperava que acontecesse tão logo, e sob tamanha violência. “E ainda por cima praticada por um gaúcho como Pinheiro Machado” – pensa, informada pela polícia sobre a origem de Manço de Paiva. 

Numa mesa ao lado da poltrona que ocupa, avolumam-se telegramas de pêsames enviados de todo o Brasil e do exterior. Um sobrinho lhe entrega em mãos um, justificando a condição especial no remetente: – É do senador Ruy Barbosa. Nhanhã o lê com atenção. Por mais que o senador baiano se tenha afastado, por oposição a Pinheiro Machado, não consegue deixar de admirá-lo. 

O que ele escreve agora, enfatizando o papel político de Pinheiro Machado, só confirma essa percepção. Ela comprime o papel sobre o peito e mais uma vez, soluça. No quarto do casal, os peritos registram que as vestes do senador estão manchadas de sangue ao nível das costas, assim como o peito da camisa e o laço da gravata. 

O fraque está rasgado por perfurações que ultrapassam o tecido, o forro, o colete, a camisa de linho e a de meia. O corpo mostra externamente uma ferida profunda e outra de menor efeito; e internamente são constatadas lesões anatomo-patológicas que não têm relação de causa com o óbito. Sua conclusão é de que o senador morreu em consequência de uma das punhaladas, que seccionou quase totalmente a aorta pulmonar, impeliu o pulmão direito para frente, gerou derrame sanguíneo calculado em três metros cúbicos e meio, parte absorvido pelo saco pericárdico, parte liberada pela boca e pelas narinas. É quase meio-dia quando os dois médicos liberam o corpo para a preparação aos funerais. 

O cadáver sobre a cama está coberto pelo lençol que oculta as costuras das incisões efetuadas pelos peritos no exercício de sua atividade. Ângelo Pinheiro Machado e o jovem deputado Flores da Cunha consideram que não é possível entregá-lo assim para a viúva e, com a ajuda de outros familiares, fazem uma assepsia prévia ao embalsamamento que o preservará para as cerimônias que se sucederão até o enterro em Porto Alegre. Somente no final da tarde é possível iniciar o velório de Pinheiro Machado. 

O corpo está disposto num caixão castanho, cujo tampo deixa ver, por uma abertura de vidro, o rosto encerado que há pouco serviu de molde à máscara mortuária que a família mandou providenciar. Nhanhã demonstra o peso da perda no semblante abatido que já completa vinte e quatro horas indormidas. Está cercada por parentes, numa corrente protetora que afasta os desconhecidos para poupá-la de mais dor. 

Ela submete-se ao liberame e à aspersão de água benta entre os que velam o seu marido, e então se acerca do caixão, dedicando-lhe suas derradeiras lágrimas: – Adeus, José. Vai para a tua terra, deixa este mundo ingrato! Deus há de te receber, tu, tão valente, ferido na guerra, morrer assim. Adeus, meu marido. Até o céu. Custa-lhe afastar-se do corpo. 

O cunhado Ângelo vem protegê-la, mas o choro de Nhanhã o contamina e a todos os que assistem à cena. Cabe ao médico e deputado pelo PRR Nabuco de Gouveia fechar a chave o caixão e convidar os presidentes do Senado e da Câmara, os ministros Alexandrino de Alencar, Caetano Faria, Pandiá Calógeras, Carlos Maximiliano e Tavares de Lyra a segurarem as alças, iniciando o cortejo do Morro da Graça ao Palácio dos Arcos. 

São sucedidos pelo próprio Nabuco, mais os ministros da Justiça e da Marinha, Soares dos Santos, Rivadávia Corrêa e Francisco Valadares. São os últimos momentos de Nhanhã com Pinheiro Machado. O cadáver é levado em romaria para a sede do Senado, de onde será depois embarcado para o Rio Grande do Sul. 

Uma longa fila de automóveis conduzindo ministros, deputados, senadores e personalidades diversas segue os carros em que estão a viúva, o diplomata Hélio Lobo representando o presidente Wenceslau e o chefe da Casa Militar, coronel Tasso Fragoso. No cais, funcionários dos governos federal e municipal ultimam os preparativos no Couraçado Deodoro, que trasladará o corpo de Pinheiro Machado até o porto de Rio Grande - de onde a viagem terá sequência, já no vapor Javary, até Porto Alegre. 

Uma rica câmara ardente está sendo construída no salão de jantar do comandante, cujas paredes recebem cobertura de crepe e seda pretos, franjados de prata. Reserva-se também outro compartimento da embarcação para o transporte das grinaldas e coroas. Nhanhã jamais se sentiu tão sozinha em sua vida. Na mão direita, carrega uma carta que Pinheiro Machado havia escrito meses antes, temendo ser vítima de um atentado. De tanto lê-la nas últimas horas, já a tem de cor na memória. 

No Palácio do Catete, o presidente Wenceslau Brás examina com assessores as consequências da crise política agravada com a morte do senador. Emite ordens protocolares por investigações aprofundadas, inteira-se da responsabilidade assumida pelo criminoso e então se recolhe aos aposentos residenciais. Amarga, em reserva, a desfeita que lhe fizeram os familiares de Pinheiro Machado, negando-se a recebê-lo horas antes no Morro da Graça. ” .  

SOBRE O AUTOR  
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007). 

Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS. 

Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).

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