Nair de Teffé nunca vira o marido tão abalado quanto nesses dias que sucedem a morte de Pinheiro Machado. Velhos amigos, o ex-presidente Hermes da Fonseca e o senador trocavam visitas frequentes, quer na residência do marechal em Petrópolis, quer na mansão da Rua Guanabara, no Rio de Janeiro. É sobre uma das mais recentes delas que ele lhe fala agora:
– Era um incorrigível sedutor. Imagine que fui a um encontro com ele este ano ao Rio, decidido a pedir-lhe que abandonasse a ideia de fazer-me senador pelo Rio Grande. Não só não consegui convencê-lo, como voltei para Petrópolis candidato e com a certeza da eleição, patrocinada por Pinheiro Machado e por Borges de Medeiros.
O marechal senta-se à escrivaninha de mogno que domina seu escritório na casa que ocupa por generosidade da família da mulher, trinta e um anos mais jovem, desposada há dois anos, dez meses depois de ter ficado viúvo, em pleno exercício da Presidência da República.
– Você está mesmo decidido? – ela lhe questiona.
– Sim. Só não acho as palavras para dirigir a Borges de Medeiros.
Como o marido, também Nair de Teffé mostra no semblante as consequências da perda de um amigo próximo. Desde que era solteira, sua família e a do senador gaúcho costumavam freqüentar-se, identificadas com o governo de Hermes da Fonseca, de quem um irmão seu era secretário e Pinheiro Machado, o político mais influente.
– Tranquilize-se que você há de achar as palavras adequadas para comunicar sua decisão aos gaúchos.
Hermes da Fonseca percorre os olhos por entre as janelas do largo escritório, observando, com certa condescendência, o estilo eclético da residência dos Teffé: o “Villino Nair”, nome que o Barão deu em homenagem à filha, havia sido originalmente construído por um mexicano atraído ao Brasil pelo jogo do bicho. A vigorosa construção possui um pátio espanhol, no qual vicejam plantas exóticas oriundas da América Central, que surpreendem e encantam os visitantes.
“Profunda é a dor que me punge n’alma desde o infame e bárbaro assassinato de meu leal e querido amigo Pinheiro Machado”, começa a escrever o ex-presidente, numa caligrafia caprichada, ao “Excelentíssimo muito prezado amigo” Borges de Medeiros...
Nair julga que sua presença não é mais necessária e se retira, em silêncio, em respeito à reserva por parte do marido. Hermes da Fonseca tem muito que dizer ao presidente dos gaúchos, mas sente a premência de antecipar o objetivo de sua correspondência.
... “Com ele acaba também a minha carreira política – da qual me retiro definitivamente – cônscio de haver honrado o elevado cargo que, somente por instâncias suas, exerci até 15 de novembro do ano passado”.
Sente, porém, que sua objetividade militar pode atingir o sentimento de um amigo, ao comunicar uma atitude decorrente da perda de outro. Por isso, descreve o que foi o seu governo: “Com ele e o nosso partido governei durante todo o quatriênio”, lembrando a solidariedade de Pinheiro Machado e do PRC.
“Mas nesses quatro anos de um governo atribulado desde o início por toda sorte de contrariedades, de decepções e de desgostos, esgotaram a minha boa fé nas promessas de lealdade daqueles que se diziam amigos políticos e destruíram pela base o meu otimismo, incutindo no meu espírito a triste convicção da incurabilidade do mal que afeta o nosso meio e que eu pretendera combater – a anarquia social”.
Não há mais o que esperar. Hermes da Fonseca pensa que achou o tom da conversa escrita com Borges de Medeiros e deslancha a pena pelo papel, desenhando em letras facilmente legíveis o sentimento que o atinge.
A carta segue então o seu rumo natural, tratando do que ele sentiu ao deixar o Catete (“...um verdadeiro alívio, como se houvesse arrojado ao solo um bloco de granito que durante anos me pesasse sobre os ombros”); da solidariedade de Pinheiro Machado contra os ataques que passou a sofrer após a presidência da República (“...A alma nobre do nosso amigo revoltou-se ante a guerra torpe e injusta levantada pelos chantagistas e desclassificados contra minha honesta administração...”); e ao lançamento de sua candidatura pelo Rio Grande (“... eis aí o que deu motivo à trava de ideias com Vossa Excelência sobre a maneira de promover veemente protesto no Rio Grande do Sul contra tão infame propaganda”).
Há no que escreve a reprodução das alegrias e das dores – especialmente destas - que sentiu em todo esse processo. O marechal assimila, protegido pela solidão temporária, cada sentimento sugerido pelas palavras. E evidencia sua gratidão (“...A essa iniciativa toda espontânea de Pinheiro Machado e ao alto e incontestável prestígio de Vossa Excelência, respeitado e admirado chefe, estimado pela reconhecida austeridade de caráter e pureza de costumes, devo a situação política em que me encontro, de senador pelo Rio Grande do Sul”).
Relê o que já escreveu e parece-lhe faltar um fecho. Procura a esposa no ambiente e só então percebe a sua ausência. Vai ao seu encontro e lhe mostra o conteúdo. Nair emociona-se com a exposição do marido num documento protocolar, mas não vê o que deva ser retirado do texto.
– Talvez precise apenas de um encerramento voltado especificamente para Borges de Medeiros – diz ela, acompanhando-o de volta ao escritório.
O senador que ora renuncia concorda: “Eis aí o histórico de minha candidatura: apresentada espontaneamente pelo nosso inesquecível chefe, patrocinada pelo reconhecido e incontestável prestígio de Vossa Excelência, não podia deixar de triunfar. Nunca será esquecida por mim uma tão preciosa demonstração de apoio da parte de Vossa Excelência o honroso diploma de senador pelo Rio Grande do Sul com que venho de ser honrado”.
Hermes apõe sua assinatura com visível satisfação ao que acaba de escrever. Depois de tê-lo feito, e novamente por sugestão de Nair, coloca entre o bloco de texto e a sua firma uma nova linha: “Abraço afetuosamente a Vossa Excelência, como admirador e amigo muito grato”.
O casal troca um forte e emocionado abraço e assim permanece por longos segundos. Hermes e Nair são surpreendidos nessa posição pelo Barão de Teffé, o dono da casa, que, no entanto, entende dever-lhes respeito pela importância do momento, ainda que desconheça a sua causa.
SOBRE O AUTOR
– Era um incorrigível sedutor. Imagine que fui a um encontro com ele este ano ao Rio, decidido a pedir-lhe que abandonasse a ideia de fazer-me senador pelo Rio Grande. Não só não consegui convencê-lo, como voltei para Petrópolis candidato e com a certeza da eleição, patrocinada por Pinheiro Machado e por Borges de Medeiros.
O marechal senta-se à escrivaninha de mogno que domina seu escritório na casa que ocupa por generosidade da família da mulher, trinta e um anos mais jovem, desposada há dois anos, dez meses depois de ter ficado viúvo, em pleno exercício da Presidência da República.
– Você está mesmo decidido? – ela lhe questiona.
– Sim. Só não acho as palavras para dirigir a Borges de Medeiros.
Como o marido, também Nair de Teffé mostra no semblante as consequências da perda de um amigo próximo. Desde que era solteira, sua família e a do senador gaúcho costumavam freqüentar-se, identificadas com o governo de Hermes da Fonseca, de quem um irmão seu era secretário e Pinheiro Machado, o político mais influente.
– Tranquilize-se que você há de achar as palavras adequadas para comunicar sua decisão aos gaúchos.
Hermes da Fonseca percorre os olhos por entre as janelas do largo escritório, observando, com certa condescendência, o estilo eclético da residência dos Teffé: o “Villino Nair”, nome que o Barão deu em homenagem à filha, havia sido originalmente construído por um mexicano atraído ao Brasil pelo jogo do bicho. A vigorosa construção possui um pátio espanhol, no qual vicejam plantas exóticas oriundas da América Central, que surpreendem e encantam os visitantes.
“Profunda é a dor que me punge n’alma desde o infame e bárbaro assassinato de meu leal e querido amigo Pinheiro Machado”, começa a escrever o ex-presidente, numa caligrafia caprichada, ao “Excelentíssimo muito prezado amigo” Borges de Medeiros...
Nair julga que sua presença não é mais necessária e se retira, em silêncio, em respeito à reserva por parte do marido. Hermes da Fonseca tem muito que dizer ao presidente dos gaúchos, mas sente a premência de antecipar o objetivo de sua correspondência.
... “Com ele acaba também a minha carreira política – da qual me retiro definitivamente – cônscio de haver honrado o elevado cargo que, somente por instâncias suas, exerci até 15 de novembro do ano passado”.
Sente, porém, que sua objetividade militar pode atingir o sentimento de um amigo, ao comunicar uma atitude decorrente da perda de outro. Por isso, descreve o que foi o seu governo: “Com ele e o nosso partido governei durante todo o quatriênio”, lembrando a solidariedade de Pinheiro Machado e do PRC.
“Mas nesses quatro anos de um governo atribulado desde o início por toda sorte de contrariedades, de decepções e de desgostos, esgotaram a minha boa fé nas promessas de lealdade daqueles que se diziam amigos políticos e destruíram pela base o meu otimismo, incutindo no meu espírito a triste convicção da incurabilidade do mal que afeta o nosso meio e que eu pretendera combater – a anarquia social”.
Não há mais o que esperar. Hermes da Fonseca pensa que achou o tom da conversa escrita com Borges de Medeiros e deslancha a pena pelo papel, desenhando em letras facilmente legíveis o sentimento que o atinge.
A carta segue então o seu rumo natural, tratando do que ele sentiu ao deixar o Catete (“...um verdadeiro alívio, como se houvesse arrojado ao solo um bloco de granito que durante anos me pesasse sobre os ombros”); da solidariedade de Pinheiro Machado contra os ataques que passou a sofrer após a presidência da República (“...A alma nobre do nosso amigo revoltou-se ante a guerra torpe e injusta levantada pelos chantagistas e desclassificados contra minha honesta administração...”); e ao lançamento de sua candidatura pelo Rio Grande (“... eis aí o que deu motivo à trava de ideias com Vossa Excelência sobre a maneira de promover veemente protesto no Rio Grande do Sul contra tão infame propaganda”).
Há no que escreve a reprodução das alegrias e das dores – especialmente destas - que sentiu em todo esse processo. O marechal assimila, protegido pela solidão temporária, cada sentimento sugerido pelas palavras. E evidencia sua gratidão (“...A essa iniciativa toda espontânea de Pinheiro Machado e ao alto e incontestável prestígio de Vossa Excelência, respeitado e admirado chefe, estimado pela reconhecida austeridade de caráter e pureza de costumes, devo a situação política em que me encontro, de senador pelo Rio Grande do Sul”).
Relê o que já escreveu e parece-lhe faltar um fecho. Procura a esposa no ambiente e só então percebe a sua ausência. Vai ao seu encontro e lhe mostra o conteúdo. Nair emociona-se com a exposição do marido num documento protocolar, mas não vê o que deva ser retirado do texto.
– Talvez precise apenas de um encerramento voltado especificamente para Borges de Medeiros – diz ela, acompanhando-o de volta ao escritório.
O senador que ora renuncia concorda: “Eis aí o histórico de minha candidatura: apresentada espontaneamente pelo nosso inesquecível chefe, patrocinada pelo reconhecido e incontestável prestígio de Vossa Excelência, não podia deixar de triunfar. Nunca será esquecida por mim uma tão preciosa demonstração de apoio da parte de Vossa Excelência o honroso diploma de senador pelo Rio Grande do Sul com que venho de ser honrado”.
Hermes apõe sua assinatura com visível satisfação ao que acaba de escrever. Depois de tê-lo feito, e novamente por sugestão de Nair, coloca entre o bloco de texto e a sua firma uma nova linha: “Abraço afetuosamente a Vossa Excelência, como admirador e amigo muito grato”.
O casal troca um forte e emocionado abraço e assim permanece por longos segundos. Hermes e Nair são surpreendidos nessa posição pelo Barão de Teffé, o dono da casa, que, no entanto, entende dever-lhes respeito pela importância do momento, ainda que desconheça a sua causa.
SOBRE O AUTOR
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
Clique aqui para acompanhar o livro A GUERRA DE CACIMBINHAS.
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