Se a manifestação inicial do coronel Zoroastro já havia acentuado as emoções das milhares de pessoas atravancadas no cemitério – algumas inclusive necessitando primeiros socorros médicos pela demorada exposição ao sol – é o discurso do orador oficial da cerimônia que produz as principais expectativas.
O jovem e promissor Antonio Vieira Pires, advogado respeitado principalmente depois de liderar o inquérito sobre incidentes ocorridos na cidade a 14 de julho, havia sido escolhido sob o patrocínio do PRR.
Dono de uma retórica irrepreensível, que costuma acompanhar da adequada teatralização para fazer-se entender mais facilmente, ele é visto pelas lideranças políticas republicanas como uma reserva pronta para alçar voos mais altos.
Sob essa imensa responsabilidade, acentuada pela comoção que atingia o Rio Grande com o crime contra Pinheiro Machado, Vieira Pires havia se preparado com antecedência, pesquisando a própria história brasileira recente – de que Pinheiro Machado era, sem dúvida, um de seus atores mais importantes, quer pela prematura participação na Guerra do Paraguai, quer pela ativa propaganda republicana ainda no tempo do Império.
Nascido no final da penúltima década do século anterior, Vieira Pires quase não teve convívio com o senador falecido.
Mas a diferença de gerações entre ambos não reduzia sua admiração ao líder político que, no Rio de Janeiro, avançava da representação do Rio Grande para fazer-se figura nacional, presidindo o Senado de fato e não raras vezes os próprios destinos do Brasil. “Quanta honra!” – repetia-se ele. “Quanta responsabilidade!” – complementava, ainda para si próprio, todas as vezes que pensava no assunto.
Vieira Pires ascende à tribuna decorada em crepe e envolta pela bandeira rio-grandense. Espremido entre o túmulo do patriarca republicano e o local que abrigaria os despojos de um de seus leais seguidores, o orador enumera as autoridades presentes, a começar pelos presidentes titular e em exercício, nomina as representações de poder ali presentes, faz uma carinhosa manifestação aos familiares do morto e então dirige o olhar para a multidão, sustentando-o por longos segundos e com isso garantindo silêncio e atenção:
– Não é à ponta de punhal que se cancela da História quem, como Pinheiro Machado, já em vida fora cortejado por ela e, depois de morto, certamente lhe violentaria as portas, se lhas tentassem cerrar. O punhal teve para ele uma dupla consequência: fechou-lhe o coração, para dentro nele sepultar-lhe a vida; e, para conservá-la sempre, abriu o coração de seu partido.
O orador interrompe sua manifestação, ora em respeito à comoção pública que suas palavras motivam; ora para retomar o fôlego que lhe falta à expressão do próprio sentimento.
– A vida não é a extensão, é a intensidade; a vida não é a estática do indivíduo, é a dinâmica da individualidade; é a exaltação do caráter ao máximo das suas energias, que passa pelo mundo abrindo sulcos profundos – quer ela se chame Lutero e pregue a Reforma; quer ela se afigure Rousseau e doutrine a Revolução; quer ela se chame Tiradentes e inspire a Independência; quer ela se chame Pedro I e a realize; quer ela revista os hábitos de Frei Caneca e pregue a República presidencial; quer ela se chame Bento Gonçalves para semeá-la pela campanha do Rio Grande, ou Castilhos, o forte, o patriarca, o ínclito, para evangelizá-la com uma pena adamantina e com sua vontade tão de ferro que parecia que não era um homem que lutava, mas um ciclope que agia; quer ela se diga Deodoro para realizar o sonho republicano; quer ela se chame Floriano, Castilhos, Pinheiro Machado e Borges de Medeiros para defendê-lo a cada instante, (...) como se ele estivesse diluído no seu próprio sangue e fizesse com o ritmo de seu coração a constante transfusão da vida do seu corpo para o corpo do seu partido.
Hora e meia após, encaminha o discurso para a apoteose final, os olhos circulando por entre as autoridades, como que à espera de suas reações:
– Felizes daqueles que amam o seu país, porque serão capazes de grandes sacrifícios. Felizes daqueles que amam uma causa, porque serão capazes de realizá-la; felizes daqueles que são generosos, porque são capazes de defendê-la; felizes daqueles que morrem na defesa dessa ideia, porque são dignos de si mesmos. Felizes, sim, porque a morte não é o ponto final, mas uma reticência que nos cumpre preencher. Felizes aqueles que alcançam a coroa do martírio, porque serão glorificados...
E então pronuncia suas palavras derradeiras:
– O nosso coração encerra o amor. O nosso cérebro guarda a grande ideia. A nossa alma alimenta a firme coragem. E não se apunhala o amor. E não se afoita em sangue a ideia. E não se sepulta a coragem. Republicanos, avante!
SOBRE O AUTOR
Luiz Antônio Nikão Duarte (Porto Alegre, 1953) é formado pela PUCRS (graduação/1977, especialização, 1982 e doutorado/2012), ESPM (MBA/2002) e UFRGS (mestrado/2007).
Exerce o Jornalismo desde 1975, com passagens pelos grupos DiárioS e Emissoras Associados, Caldas Júnior, Jaime Câmara, RBS, O Estado de S. Paulo, Sistema Jornal do Brasil; pelos Governo Federal e do Rio Grande do Sul; e ainda pelo Congresso Nacional, pela Associação Nacional de Jornais, pela Federação das Indústrias (FIERGS) e pela PUCRS.
Professor (UnB e Uniceub, na década de 1990 e da Unisinos, na atualidade). Participou da antologia Contos de Oficina 21 (Porto Alegre: Edipuc, 1998) e escreveu os livros Redação em RP (São Leopoldo: Unisinos, 2012) e A guerra de Cacimbinhas (Porto Alegre: ComEfeito, 2015).
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